Nossa democracia está ameaçada?

O Colégio, cujo projeto pedagógico tem entre seus valores o apreço ao livre pensar e a formação para a consciência crítica e o pensamento reflexivo, realizou na noite de ontem, 11 de junho, o webinar “Democracia em Debate”.

O intuito do encontro era dar espaço para uma conversa franca e acolhedora sobre o valor da democracia e a defesa do Estado democrático, temas que vêm mobilizando parcela significativa da sociedade brasileira. O debate se intensificou nas últimas semanas com a criação de movimentos importantes como o #EstamosJuntos e o #Basta, dos quais participam vários representantes da nossa comunidade, como a roteirista Carolina Kotscho e os advogados Flávia Rahal e José Carlos Dias, presentes no webinar.

A mediação ficou a cargo do Diretor Geral Fábio Marinho Aidar e contou com a colaboração dos professores Caco Neves (História e Ensino Religioso) e Marco Cabral (História e Sociologia), responsáveis por receber as perguntas enviadas por nossa comunidade antes e durante o debate.

Fábio Aidar apresentou os palestrantes e pediu que eles contassem como os movimentos surgiram. Carolina Kotscho, ex-aluna e mãe de alunos do Colégio, disse que o #EstamosJuntos surgiu de forma espontânea, em um grupo de whatsapp bem heterogêneo, mas parte de uma angustia que é comum a todos: “não é uma questão de ideologia, é uma questão de princípio e é isso que defendemos. Somos muitos, somos diferentes, mas estarmos juntos faz toda a diferença. Não podemos ser devorados pelo discurso de ódio e por uma minoria violenta. Buscamos uma saída democrática, respeitando a constituição.”

Flávia Rahal não é organizadora do movimento #Basta, mas foi uma das primeiras a se unir a ele e o fez como cidadã que percebeu a necessidade de a sociedade civil se manifestar. “O #Basta também nasceu espontaneamente, quase como um grito coletivo contra a sucessão de agressões que a democracia vem sofrendo. Foi uma faísca que se espalhou muito rapidamente entre pessoas com visões ideológicas diferentes, mas com um propósito em comum que é a defesa da democracia. A ideia é unir esforços para chegar num consenso possível, para projetarmos os próximos passos nessa base democrática que é tão essencial para construirmos uma sociedade menos desigual.”

Flávia relembrou que passou quase toda a sua vida escolar, no Santa Cruz, em uma ditadura. Ao entrar na faculdade de direito, acompanhou com entusiasmo a promulgação da constituição. “Uma constituição garantista com princípios e direitos individuais belíssimos e a gente via no caminho constitucional a projeção e a perspectiva de um país melhor, mais igualitário. Eu construí a minha vida com esses princípios, atuando pela liberdade de ir e vir, de se expressar, de se informar, de ser. Nessa perspectiva de que o caminho constitucional da democracia nos levasse a um país menos desigual, menos racista, menos injusto. De repente, eu vejo meus filhos, em 2020, estudantes do mesmo colégio, que tem toda essa carga humanista, tendo que viver em uma sociedade cada vez mais intolerante e dividida.”

José Carlos Dias abriu sua fala contando que tem quatro netas estudando no Colégio e que, portanto, estava se sentindo em casa. “Eu não pertenço a nenhum dos dois movimentos, mas assinei ambos. Recordo o período mais duro em que trabalhei, durante a ditadura, quando defendi centenas de perseguidos políticos. Essas pessoas e políticos de várias tendências foram ao palanque das Diretas Já, unificados todos pelo compromisso com a democracia. E é isso que é fundamental e faz com esses movimentos tenham identidade. É extraordinário ver como as pessoas dão as mãos quando é necessário fazer uma prece conjunta, uma prece em favor da democracia.”

O advogado lembrou de seu trabalho na Comissão Nacional da Verdade, onde teve o papel de documentar tudo o que aconteceu no período da ditadura. “Fizemos isso para que os jovens de hoje, que não viveram o período, saibam que não é possível que o futuro venha a ter essa mesma mancha. Quando aceitei o convite para vir falar aqui, vejo que é uma responsabilidade muito importante porque estou falando para a garotada, minhas netas, esse pessoal que está florescendo e que nós apostamos que vão salvar esse país. Eles precisam saber que é possível lutar para manter a liberdade de expressão, o respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente, que são valores tão grandes quanto a própria vida.”

Caco Neves iniciou a rodada de perguntas enviadas pelo público, mas antes citou o trecho de “Grande sertão: veredas”, em que Guimarães Rosa escreveu: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

A primeira questão foi sobre escola e democracia: qual é a perspectiva da educação nesse cenário?

A primeira a responder, respeitando a ordem alfabética, foi Carolina Kotscho. “Não acredito em uma escola apartidária, acredito em uma escola que respeita as diferenças, suprapartidária, que defenda princípios.”

Flávia Rahal, reiterou que a escola é essencial nesse momento. “Começa pela oportunidade que estamos tendo aqui de reflexão e de diálogo. A escola é fundamental para formar pessoas que respeitem o pluralismo de ideias, que ouçam o diferente sem se sentir atacado por ele. Isso é valoroso, é o papel do Santa, colocar quem tem o privilégio de ter uma educação, como é o nosso caso, agindo pelo social. Boa parte da solução para os problemas que vemos hoje, históricos, dessa sociedade desigual e injusta, nasce na escola, com a educação. Temos educar pessoas mais preparadas para lidar com o coletivo.”

José Carlos Dias, foi direto ao afirmar: “Não existe democracia sem educação séria.”

O professor Marcos Cabral disse que a democracia permitiu a ascensão de um projeto antidemocrático e lançou a pergunta: Onde erramos e o que podemos fazer para evitar que isso ocorra de novo?

Para o advogado José Carlos Dias, a democracia tem isso, é a pluralidade de vozes e pensamentos. “Minha preocupação é que caminhemos para a ditadura pelo voto e isso seria uma coisa terrível. A sociedade civil tem que repensar os erros cometidos e o caminho que deve seguir. Essa reflexão é muito importante.”

“É muito cruel que hoje em dia tenhamos que escolher entre ser anti-racista ou anticorrupção, uma falsa dicotomia que levou o debate e as pessoas ao erro. Não é hora de apontar o dedo, a saída está em um lugar de acolhimento”, ponderou Carolina.

A próxima pergunta, feita por Caco Neves, dizia respeito as aspirações democráticos no campo artístico. Carolina começou ressaltando que nos últimos anos a arte e a ciência foram brutalmente atacadas. “Todo o caldo que promove reflexão na sociedade. Isso foi uma desconexão das elites com o resto do país. Ficamos olhando para o próprio umbigo, os artistas se encolheram, mas agora veio essa onda e ninguém segura o “gabinete do amor.”

Para Flávia, a democracia aceita as diferenças e tem espaço até para quem pensa contra ela mesma. “As democracias não morrem só pelos golpes, morrem também quando suas estruturas vão sendo minadas pouco a pouco e é essa percepção que fez com que esses movimentos surgissem.

Marco Cabral perguntou à Flávia se existe democracia em tempos de fakenews.

“Essa é uma questão muito delicada: não tem sociedade civil organizada sem direito à informação e não tem informação séria e verdadeira sem liberdade de imprensa. isso não significa que cabe tudo como liberdade de expressão. Cito aqui um artigo que o Eugênio Bucci escreveu em que ele fala que fakenews não devem ser traduzidas por “notícias falsas” porque são notícias fraudulentas, que têm a intenção de atacar. Se elas têm a intenção de atacar, elas estão no guarda-chuva da intolerância e não podem ser encaradas como liberdade de expressão. Temos que entender os algorítimos para ver de que forma a gente se protege dessa massificação de desinformação.”

Carolina, que recentemente teve todas as suas contas atacadas por hackers, completou: “Você combate a falsidade com a verdade, o ódio com o amor. Temos que ter a humildade de falar o obvio de maneira simples. A gente combate fakenews ocupando espaço com a verdade e com um diálogo generoso, respeitoso e afetuoso.”

Quando o debate já ia se aproximando de seu final, Caco Neves perguntou qual era o papel das elites brasileiras nesse cenário de polarização. Ao responder, os debatedores também aproveitaram para fazer suas considerações finais.

“Se não for por compaixão, empatia e solidariedade, que seja por interesse das elites. Não existe país eficiente e desenvolvido se a gente não pode sair na rua pelo vírus ou pela violência. Ninguém vai ter mais lucro nessa situação de calamidade que estamos vivendo. Agora, não importa as motivações de cada um, é hora de defender a democracia e a vida”, convocou Carolina.

José Carlos Dias disse que o isolamento imposto pela quarentena é um instante doloroso e um desafio para que façamos uma reflexão. “Nosso país está muito mal visto lá fora, estão vendo o desgoverno. Ao sairmos vivos dessa pandemia, nossa responsabilidade aumenta. Temos o dever de atuar politicamente como sociedade civil, em movimentos, por meio de entidades, temos de dizer não, chega, basta! Temos que substituir o luto pela luta.”

Flávia agradeceu o momento rico de diálogo e de reflexão sobre tantas questões essenciais. “Que bom perceber que temos que mudar e caminhar pra frente. Que bom perceber esses movimentos que se uniram com tanta rapidez, que querem algo melhor. Isso tem que ser estímulo, combustível para que da inercia a gente passe a construir um país mais justo e mais igual.”

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