Por que escolher autoras brasileiras como tema para as indicações literárias de junho? Alguns diriam que autores de qualidade independem de gênero. No entanto, historicamente, é sabido que por muito tempo as mulheres tiveram que publicar suas obras com pseudônimos masculinos ou receberam direitos autorais menores em relação aos autores. Por isso, nunca será demais salientar o valor de suas obras, fazendo jus ao repertório que temos e a qualidade literária de cada autora.
Escolher quais obras indicar é sempre tarefa difícil, pois dá a sensação de que deixamos muitas de lado. Nos proporciona certa tranquilidade saber que teremos outras oportunidades para apresentar aquelas que não estiverem nessa seleção.
E você, já parou para pensar em quantas autoras brasileiras tem na estante? Quantas já leu? De autoras clássicas a contemporâneas, a equipe da biblioteca selecionou algumas.
Vamos começar pelas escolhas feitas pela Joelsa, que nos traz duas autoras bem conhecidas. Uma delas, apesar de não ter nascido no Brasil, é das escritoras mais brasileiras. “Clarice Lispector e Cora Coralina são escritoras brasileiras distintas e ‘opostas’ em seus estilos. Mas, com ambas, o leitor pode experimentar os sabores na forma de palavra.”
Estórias da casa velha da ponte
Autora: Cora Coralina
Editora: Global
Cora Coralina, nascida Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, em 1889 (há mais de 130 anos!), na cidade Goiás, cursou até a terceira série primária e escreveu sua trajetória de vida de maneira muito singular. Quando menina, devorava livros e aos 14 anos publicou seu primeiro conto, mas foi só aos 76 que seu primeiro livro foi publicado: Poemas dos becos de Goiás e estórias mais.
Com um vocabulário simples, autêntico e terno, suas obras são marcadas pelo lirismo e pelo estilo oral de contadora de histórias. Usa a memória como instrumento para redimensionar experiências individuais e coletivas, o que chamou a atenção de Carlos Drummond de Andrade e Monteiro Lobato.
Quando lemos o livro “Estórias da casa velha da ponte” ficamos sabendo dos “causos” de casamentos (O casamento e a cegonha), das superstições (O caso de Mana) e dos raptos de donzelas (Cortar em riba dos do rasto) de maneira pitoresca. É como se a capa e as páginas do livro fossem o telhado do Casarão e os leitores fossem convidados a conhecer um Brasil do final do século XIX e início do século XX.
Para quem quer conhecer um pouco mais sobre essa autora, o documentário “Cora Coralina – todas as vidas”, de Renato Barbiere, está disponível na internet.
Joelsa, imersa no universo dessas duas autoras, faz a seguinte reflexão: “Ao contrário do efeito que Clarice Lispector promove no leitor, as obras de Cora Coralina deslizam na garganta feito o melado dos doces caseiros produzidos por ela, doceira de panela e d’alma.”
Água Viva
Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Convidar os leitores a lerem Clarice Lispector é desafiador. Como já disse Benjamim Mozer*, um de seus biógrafos, ela é glamorosa, encantadora, uma feiticeira, um nervoso fantasma que assombra todos os ramos das artes brasileiras.
Escolhemos apresentar o livro “Água viva” e pedimos ao leitor para se arriscar de mãos dadas com a autora a mergulhar no universo particular criado por ela e pulsar num jogo de palavras que nos são emprestadas.
Para saborear, alguns trechos da obra:
“E antes de mais nada te escrevo dura escrita. Quero como poder pegar com a mão a palavra. A palavra é objeto? E aos instantes eu lhe tiro o sumo de fruta. Tenho que destituir para alcançar o cerne e semente vida.”
“Quem me acompanhar que me acompanhe: a caminhada é longa é sofrida mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando com as palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além.”
“escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa escreveu. Uma vez que pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar fora a palavra. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.”
“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.”
“O que te escrevo não vem de manso, subindo aos poucos até um auge para depois ir morrendo de manso. Não: o que te escrevo é de fogo como os olhos em brasa.”
Na leitura do livro a autora, feito temperatura alta, aquece. O leitor, feito água, transborda.
* Moser, Benjamin. Clarice. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
Felicidade Clandestina
Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Felicidade Clandestina é outro livro de Clarice. Reúne 25 contos e em cada um deles acontecem fatos inesperados que derrubam as protagonistas, mulheres maduras ou jovens meninas, de seu estado de felicidade.
Um dos contos mais conhecidos é o que dá nome ao livro. A maneira que encontramos de apresentá-lo é por esse áudio em que a voz de Aracy Balabanian dá vida às personagens e podemos viver a clandestinidade da felicidade.
Ainda de Clarice Lispector, Dina nos indica 4 livros que merecem ser lidos com as crianças. “Nesses livros, Clarice escreve como se estivesse conversando com o leitor. É como se sentíssemos a presença da autora. Ela nos questiona e faz com que o leitor interaja com ela. Eu me apaixonei!”
O mistério do coelho pensante
Autora: Clarice Lispector
Editora Rocco Pequenos Leitores
Nessa história, ninguém imaginava que o coelho podia ter ideias pelo fato de acharem que ele não podia pensar. Mas ele surpreende a todos mostrando que pode não pensar, mas ter ideias. Sabe como? Cheirando-as! Mas como isso acontece? É preciso ler e descobrir.
A vida íntima de Laura
Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco Pequenos Leitores
Laura é uma galinha muito especial. Diferente de outras, é simpática e muito orgulhosa por ser casada. Como será conhecermos a intimidade da vida de uma galinha? Pode ser bem inusitado!
A mulher que matou os peixes
Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco Pequenos Leitores
Nesse livro, há muitos bichos e a narradora fala do carinho que tem por eles. Ela pede perdão pelos peixes que matou e conta como isso aconteceu para que os leitores a entendam.
Quase verdade
Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco Pequenos Leitores
Livro bastante diferente, fala de muitos sentimentos. É um verdadeiro encanto. Uma das falas do narrador diz: “Pois não é que vou latir uma história que até parece de mentira e até parece de verdade?”
Vale a pena conhecer mais essa obra dessa coleção de Clarice.
Fabiana nos traz 3 indicações e, para ela, “as autoras escrevem sobre mulheres brasileiras, sobre uma realidade tão próxima que é quase impossível não se identificar com alguma personagem ou até mesmo lembrar alguém que conhecemos ou passou por nossa vida. Ler autoras brasileiras é o mesmo que se (re)conhecer, a empatia é inevitável.”
Insubmissas lágrimas de mulheres
Autora: Conceição Evaristo
Editora: Malê
No livro, a autora dá voz às mulheres negras e cada capítulo é um conto que traz o nome de uma personagem. São 13 relatos fictícios ou “escrevivências” como diz Conceição, “relatos do cotidiano, da vida”. São histórias fortes, de violência contra a mulher, como nos contos “Aramides Florença”, “Shirley Paixão” e “Lia Gabriel”, ou como no conto “Troçoléia”, que recebeu este nome do pai por machismo.
Embora sejam histórias de mulheres que passaram por dores, que enfrentaram o racismo, que sofreram violência por seus maridos ou pais, também são histórias de mulheres que conseguiram de alguma maneira superar e falar sobre estas dores. Contadas de uma maneira muito particular pela autora, trazem expressões próprias, como ela diz, “expressões que ela ouvia muito em sua família e no dialeto mineiro”.
Vale a pena conhecer também outros títulos da autora:
Becos da memória
Ponciá Vicêncio
Olhos d’água
Histórias de leves enganos e parecenças
Poemas de recordação e outros movimentos
A vida invisível de Eurídice Gusmão
Autora: Marta Batalha
Editora: Companhia das Letras
Romance de estreia da autora, o livro é ambientado na cidade do Rio de Janeiro, no início dos anos 1940 e narra a vida das irmãs Eurídice e Guida Gusmão.
Enquanto Guida desaparece sem deixar vestígios, Eurídice se casa e se torna dona de casa, esposa e mãe exemplar.
Marta Batalha nos apresenta uma narrativa bem humorada, em que as personagens principais são as mulheres, seu cotidiano e uma sociedade conservadora que insistia em apagá-las, em reprimir seus sonhos. É daquelas leituras gostosas, que se lê rápido, sem querer parar.
Baseado nesse livro, em 2019, foi lançado o filme “A vida invisível”, que conta com Fernanda Montenegro no elenco.
Nunca houve um castelo
Autora: Marta Batalha
Editora: Companhia das Letras
O segundo romance de Martha Batalha também é ambientado na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX. Narra a história do casal sueco Brigitta e Johan Jansson que constroem um castelo suntuoso, no bairro de Ipanema.
A partir daí, a narrativa nos leva a conhecer a história dos filhos e depois dos netos dos dois. Uma saga que percorre a história da família Jansson por mais de 100 anos.
O romance é surpreendente, com o humor e a ironia característicos de Marta Batalha e nos apresenta diversos personagens e suas histórias que se conectam ao longo da trama, as dores e às alegrias de viver na sociedade carioca dos anos 60, e como os acontecimentos no Brasil, como a ditadura, a revolução sexual e o movimento feminista impactam suas vidas.
Quando lemos as obras de Batalha, é impossível não pensar em nossas avós ou nas mulheres de uma geração que tiveram suas histórias e sonhos apagados ou reprimidos por uma sociedade patriarcal e conservadora.
Para encerrar, duas indicações de Sandra: “Uma é autora bem conhecida. Teve uma vida muito difícil, mesmo depois que foi reconhecida como escritora competente. Carolina Maria de Jesus compartilha em seus livros sua sensibilidade ao registrar o cotidiano, a fome, a angústia, a tristeza e a alegria que sentia na singeleza e dureza de sua vida. A outra autora é Jarid Arraes, uma jovem, que sinto que qualquer palavra para descreve-la, assim como com Carolina, pode parecer pouco, para falar de sua escrita. É incrível, criativa, poética, precisa e contundente! Traz a realidade da vida na região do Cariri onde viveu e desenvolveu sua literatura. Duas autoras que precisam estar na lista de leitura de quem quer conhecer o universo literário brasileiro”.
Quarto de despejo – diário de uma favelada
Autora: Carolina Maria de Jesus
Editora: Ática
Já bastante conhecido, esse livro fez Carolina ser estimada mundialmente devido a sua escrita direta, sincera e sensível. Foi traduzido para 13 línguas! Nessa obra, “descoberta” pelo jornalista Audálio Dantas nos anos 1950, Carolina escreve para contar sobre sua vida, como catadora de papeis, sobre a convivência na favela do Canindé, que hoje já não existe, e principalmente como enfrentava a fome, a miséria e a injustiça social.
Para conhecer um pouco, as palavras da autora:
“Como é horrível ver um filho comer e perguntar: ‘Tem mais?’ Esta palavra* ‘tem mais’ fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais.”
“Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade* ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria se revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz* dos políticos açambarcadores”.
* a edição do livro respeitou a linguagem da autora, mesmo que contrariando as normas da língua escrita.
Redemoinho em dia quente
Autora: Jarid Arraes
Editora: Alfaguara
Jarid Arraes é cordelista e tem mais de 70 títulos publicados. “Redemoinho em dia quente” é seu terceiro livro. São contos, muitos narrados em primeira pessoa, que nos fazem sentir mais profundamente os relatos, como vivências compartilhadas. As palavras são precisas, profundas e poéticas:
“Aquece meu corpo, me queima os fatos, me exibe monstruosa e com dentes pontiagudos. Esses dois seios à mercê da gravidade de quem sou. E um cabelo que, espero, me faça sombra”.
A autora rompe limites, regras, consensos, conceitos e o faz com maestria. O melhor exemplo, é um de seus contos, em que tensiona o gênero literário, que faz frases curtas e que juntas, contam e maravilham. Para mim, o melhor exemplo: “Boca do povo”!
Impossível não terminar de ler, e não levantar os olhos das páginas e pensar: que maravilha!
Para quem se interessou e quer conhecer um pouco mais sobre essas autoras e suas obras, sugerimos acompanhar o canal Bondelê – Livros e Leituras com autoras brasileiras, no YouTube.
Boas leituras e até a próxima indicação!
Equipe da Biblioteca