O dia mundial do refugiado é celebrado em 20 de junho, enquanto o dia do imigrante é comemorado, nacionalmente, em 25 de junho. As datas são próximas, e os conceitos por trás delas se confundem e trazem dúvidas para muitos. Afinal, qual a diferença entre um refugiado e um imigrante? Acreditamos que seja bom momento para reflexão.
Como tratar de um tema tão complexo e necessário como este?
Para apoiar essa reflexão, convidamos o diretor dos Cursos Noturnos do nosso Colégio, uma das coordenadoras pedagógicas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e duas alunas para que nos apresentem, por meio de seus depoimentos, a potência da educação e da escola no acolhimento dos imigrantes que chegam aqui todos os dias, que aprendem, ensinam e compartilham vivências.
Redefinindo conceitos
Imigrantes são, essencialmente, pessoas que entram em um novo país. O conceito não deve ser confundido com o termo emigrante, que se refere àqueles que saem de um país. Ou seja, qualquer imigrante que cruza as fronteiras brasileiras é, portanto, um emigrante em sua terra natal.
Já os migrantes são pessoas que se locomovem de uma região à outra independentemente de fronteiras estabelecidas.
Mas e os refugiados?
Os refugiados também são pessoas que deixam suas nações, mas o diferencial é a motivação da mudança. Pessoas que se refugiam abandonam seus países por razões como perseguição política e ideológica, cenários de guerra, conflitos internos, entre outras violências responsáveis por infringir os direitos humanos dos cidadãos. Neste caso, a migração ocorre em busca de proteção, e o motivo pelo qual a pátria foi abandonada é um fator definitivo.
A migração é algo que nosso continente conhece há milhares de anos. Afinal, o homo sapiens não se originou por aqui. A teoria mais comum é que foi através do Estreito de Bering, no último período glacial, que o homem enfim chegou à América. A imigração foi igualmente marcante: grande parte da população brasileira hoje descende da mais diversa gama de imigrantes: portugueses, espanhóis, japoneses, italianos… Muitas nacionalidades contribuíram para a composição nacional.
Refugiados ou imigrantes, todos que saem de sua pátria para um ambiente novo e desconhecido merecem atenção e acolhimento. Não é incomum que os que imigram não estejam familiarizados com o português, por exemplo, ou que sofram intensa xenofobia. Esses entraves dificultam a ambientação e, muitas vezes, estimulam condições de vida precárias.
A EJA acolhe
Levando tais aspectos em consideração, a Equipe da Biblioteca Pe. Charbonneau decidiu destacar outro lado do processo imigratório, no qual o holofote não está voltado para as temáticas citadas, mas, sim, para o acolhimento. Acolhimento feito por meio da educação e da escola, uma realidade vivenciada também nos cursos oferecidos pelo Colégio Santa Cruz, desde 1974.
“A escola pode se tornar um importante espaço de socialização e de trocas culturais. É lugar privilegiado para o encontro e para a valorização da diversidade cultural. Se houver espaço de participação e diálogo, pode fortalecer tanto os aspectos de reconhecimento de identidade como de construção de alteridade. No caso da EJA, temos ainda a enorme riqueza de perfis e trajetórias diferentes que se encontram aqui. Isso favorece muito a integração ao novo território e o enriquece também”, diz, em entrevista, Giulia Murakami Mendonça – coordenadora da EJA.
Em conversa com nossa equipe, Fernando Frochtengarten, diretor dos Cursos Noturnos, conta-nos que o curso não tem atualmente uma grande procura por parte de imigrantes, provavelmente pelas questões que estamos enfrentando no momento, mas que passaram por aqui, recentemente, alunos dos seguintes países: Bolívia, Colômbia, Venezuela, Cuba, Haiti, China e Serra Leoa.
É, entretanto, essencial dar voz àqueles que vivem essa situação, para retirar o processo do lugar de uma teoria distante; uma realidade alheia. Com o objetivo de fornecer espaço de fala a imigrantes, nossa equipe realizou, também, entrevistas com duas alunas estrangeiras que frequentam atualmente as aulas da EJA.
Roxana, aluna da fase 4, hoje com 40 anos, está em sua segunda estada no Brasil. Sua primeira imigração se deu em 2015, quando deixou a Bolívia para ingressar sozinha no território brasileiro. Após um retorno a seu país, em 2018, voltou para cá em companhia do marido. Em sua terra natal, ficaram as duas filhas e os netos.
O motivo para tamanha mudança? Segundo ela, a busca por melhores condições de vida.
Logo no início, Roxana trabalhou como empregada doméstica, e foi nesse ambiente que recebeu incentivo para estudar; na Bolívia, tinha parado os estudos aos 11 anos. Foi por meio da indicação de uma professora brasileira que Roxana conheceu a EJA. O começo dessa jornada trouxe desafios: “No primeiro dia [de aula], eu tinha medo, vergonha, tava aprendendo a falar português, mas falava um portunhol todo atrapalhado”, conta ela.
Ao longo de toda a entrevista, Roxana reafirmou a intenção de estudar para aprimorar o português, devido ao fato de o desconhecimento da língua ter sido sua maior dificuldade enfrentada nos primeiros anos aqui. “Quando a gente chega pela primeira vez, tem muita dificuldade. A língua é diferente, é muito difícil.” Em seguida completou: “A gente era sozinho e tinha vontade de voltar de novo pro nosso país.”
Esse foi, também, um ponto destacado por Giulia, coordenadora pedagógica. De acordo com ela: “Quando recebemos alunos imigrantes, tomamos o cuidado de acompanhar a chegada e dar algum apoio em relação ao idioma, quando o aluno precisa.”
Por conta desse delicado aspecto da vida imigratória, que engloba a comunicação como um todo, a atuação da EJA foi indispensável para Roxana. Ela nos conta que, no começo, tinha dificuldade de entender as provas e as tarefas. “Lembro que na folha tinha: ‘quanto que você paga no cinema?’ E eu falei: quê? Que isso? […] Na Bolívia, cinema é cine.”
Apesar dos evidentes desafios, Roxana comentou que, ao longo de seus estudos, um dos maiores diferenciais foi se sentir acolhida pela comunidade educativa: “Agora eu não tenho vergonha, conheço os colegas. Os professores são muito bons, os colegas também. Eu nunca senti que me olhavam de um jeito diferente porque eu era de um outro país.”
Hoje, a aluna tem como ambição virar enfermeira para cuidar de pessoas idosas. Sente necessidade de falar melhor a língua portuguesa para que consiga atender, com responsabilidade, às necessidades, muitas vezes medicamentosas, dos pacientes. Ao ser questionada se em algum momento de sua trajetória educativa ela teve vontade de desistir, sua resposta foi resoluta: “Não […] a gente faz aqui outra família.”
Roxana ressaltou outra realidade enfrentada por imigrantes: “Na maior parte, boliviano trabalha muito. Na verdade, abusam das pessoas. Tem que entrar às 7h e sair às 10h da noite. Então a maior parte dos bolivianos não pode estudar porque trabalha até as 10h da noite.”
Apesar disso, ela concluiu sua entrevista com uma nota positiva, explicando como aborda jovens imigrantes no Brasil: “Eu sempre falo da escola Santa Cruz […] tem muito menino jovem que tem a oportunidade de estudar […] vai aprender a escrever direitinho, ninguém vai enganar. É boa essa escola, viu? Eu agradeço muito por entrar, pela oportunidade dos professores, secretaria […] eu agradeço muito.”
Assim como Roxana, a aluna Rosmira, de 47 anos, também é aluna da EJA. Apesar de ambas serem imigrantes, suas histórias são incrivelmente distintas. Rosmira é colombiana e sua imigração ao Brasil, em 2018, foi apenas uma segunda etapa de um longo processo. Afinal, já em 2002, Rosmira estava imigrando aos Estados Unidos e enfrentando a realidade do processo na América do Norte.
Pessoas diferentes enfrentam trajetórias diferentes. Isso se evidencia na diversidade encontrada nas respostas das entrevistadas. Para Rosmira, especialmente, um aspecto fundamental da educação é a integração social que ela proporciona: “A educação ajuda muito e você conhece pessoas, compartilha com pessoas,” afirma ela.
Rosmira caracterizou a EJA como um curso destinado para além do tradicional, que lhe proporcionou desde aulas de português até socialização e teatro: “Pra mim, foi muito bom, eu descobri muitas amizades, as pessoas são muito boas, todo mundo se ajuda. Aprendi muito, muitas coisas que eu não sabia.”
Apesar de suas diferenças de caminho, Rosmira e Roxana se encontram na exaltação da educação. “Eu acho que [a escola] fez muita diferença. E eu falo pros meus companheiros de sala e de outras salas que têm que continuar. Porque se aprende muitas coisas importantes,” detalhou Rosmira.
Igualmente, do mesmo modo que Roxana, Rosmira nunca considerou a desistência. Ao contrário: “Eu incentivava minhas colegas!” E pode-se dizer que é essa exata persistência que faz da EJA uma constelação de diversidades enriquecedoras.
Finalizamos, com as palavras de Giulia, que aborda a questão do acolhimento do estrangeiro que se revela como uma característica fundamental da educação:
“Assim como as reflexões sobre inclusão escolar e necessidades especiais, as questões ligadas aos alunos imigrantes compõem o vasto campo da diversidade que a escola tem procurado incorporar. O desafio de cada uma dessas particularidades é dar sentido positivo à diferença, é romper com pressupostos universais e de normalidade, fomentando a convivência entre saberes e subjetividades como modo de desenvolvimento humano e via fértil para a educação.”
Para contribuir um pouco mais com essas reflexões, oferecemos um mural com algumas sugestões de livros que tratam sobre o tema e que estão disponíveis em nosso acervo da Biblioteca.
Agradecemos as contribuições e a disponibilidade de Fernando, Giulia, Roxana e Rosmira. Sem eles, este texto não teria sido possível.
Equipe da Biblioteca Padre Charbonneau
Fontes:
https://www.nationalgeographic.com/science/article/when-and-how-did-the-first-americans-arrive–its-complicated-
https://www.historiadobrasil.net/imigracao/
http://www.museudaimigracao.org.br/blog/migracoes-em-debate/migrante-imigrante-emigrante-refugiado-estrangeiro-qual-palavra-devo-usar
https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/noticias/voce-sabe-a-diferenca-entre-emigrar-imigrar-e-migrar
https://www.britannica.com/story/whats-the-difference-between-a-migrant-and-a-refugee
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/12/17/brasil-registrou-1-milhao-de-imigrantes-em-dez-anos
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/12/17/numero-de-imigrantes-com-carteira-assinada-no-brasil-quase-triplica-em-10-anos.ghtml
https://www.institutounibanco.org.br/aprendizagem-em-foco/38/
https://novaescola.org.br/conteudo/1534/o-desafio-das-escolas-brasileiras-com-alunos-imigrantes